Isa Silva, Maria Isabel Casella, Francisco Rebocho, João Torres, Carina Carvalho, Bernardo Pereira, Armindo Ramos
INTRODUÇÃO
A falência hepática aguda (FHA) é uma entidade relativamente rara, fortemente associada a elevadas taxas de letalidade. De acordo com o Registo Europeu de Transplante Hepático, a sua incidência é inferior a 10 casos por milhão/ano, constituindo indicação primária para transplante em 8% de todos os transplantes hepáticos. A FHA caracteriza-se classicamente por disfunção hepática associada a coagulopatia e encefalopatia. Contudo a sua apresentação em falência multiorgânica pode mimetizar outras entidades clínicas, atrasar o seu diagnóstico e ser consequentemente fatal.
CASO CLÍNICO
Mulher de 18 anos, sem antecedentes de relevo, com internamento recente no Serviço de Obstetrícia, por parto eutócico com expulsão de feto morto com 32 semanas. Dois dias depois recorre ao Serviço de Urgência por epigastralgias e vómitos desde essa madrugada. Ao exame objectivo com confusão mental, polipneia e dor difusa à palpação abdominal, sem sinais de irritação peritoneal (qSOFA 2). Electrocardiograma com taquicardia sinusal (120 bpm). Com acidémia metabólica grave (pH 6.92) e hiperlactacidémia (13.4 mmol/L). Analiticamente com padrão citocolestático de novo, prolongamento de APTT com INR espontâneo de 2.45 e elevação de parâmetros de infecção (leucocitose com neutrofilia e PCR 2.79mg/dL). Ecografia abdominal com hipoecogenicidade difusa hepática. Inicialmente abordada como choque séptico em falência multiorgânica, foi posteriormente apurada informação clinica com a mãe que revelou ingestão de 10g de paracetamol nas 24h precedentes, de forma faseada, por queixas álgicas. Admitida em Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente por FHA em contexto de intoxicação medicamentosa por paracetamol. Iniciou protocolo de tratamento com N-acetilcisteína endovenosa (doseamento de acetaminofeno sérico de 104.8mg/L). Evolução clinica desfavorável tendo sido transferida para Centro de Transplantação Hepática, já sob suporte de órgão respiratório e cardiovascular, e colocada em lista para transplante emergente. Submetida a transplante hepático isogrupal, três dias após a transferência, com evolução clinica favorável e alta após 1 mês.
DISCUSSÃO
A FHA pela sua evolução galopante constitui uma emergência médica. Pode mimetizar uma falência multiorgânica inespecífica e cujo não reconhecimento é catastrófico. A apresentação inaugural de disfunção hepática grave num quadro clinico de resposta inflamatória sistémica deve sugerir o diagnóstico. Numa era cada vez mais tecnológica e algoritmizada, a recolha de uma boa história clínica, continua a ser o pilar da boa prática médica. Destaca-se ainda a importância de informar o doente da posologia dos fármacos e efeitos deletérios associados à sobredosagem.