Manuel Martins Barbosa, Elsa Araújo, Joana Serôdio, Marta Pereira, Tiago Mendes, Liliana Costa, Paula Brandão
Introdução:
A calcifilaxia é um dos problemas mais graves associados à doença renal crónica. Apesar de anteriormente considerada uma doença rara e quase limitada a doentes dialisados, o número de casos publicados tem vindo a aumentar na última década. Isto pode dever-se a múltiplos factores, como aumento da atenção para o diagnóstico e o aumento de esperança média de vida dos doentes renais crónicos. Acredita-se que a sua patologia se deve a consequências da doença mineral óssea relacionada com a doença renal crónica, mas os valores de cálcio, fósforo e hormona paratiroideia são pouco significativos no seu estudo. Há vários factores de risco identificados, nomeadamente o sexo feminino, idades a partir da quinta década de vida, a existência de doenças auto-imunes concomitantes e a iatrogenia de fármacos como varfarina, cálcio, ferro e imunossupressão. O diagnóstico implica forte suspeita clínica, e é apenas confirmado por biópsia cutânea. Várias estratégias de tratamento têm sido propostas, mas nenhuma dirigida. O objectivo é o de suporte do doente, com foco no controlo álgico, limitar propagação de lesões, evitar infecção e eventualmente reunir condições para transplante cutâneo.
Caso clínico:
Apresentamos um caso de calcifilaxia não-urémica, a forma menos comum da doença. Uma mulher de 79 anos, com antecedentes de substituição valvular aórtica com prótese mecânica, doença renal crónica, oligoarterite e anemia é internada num serviço de Medicina Interna para estudo e controlo sintomático de pequenas lesões violáceas, dolorosas, a nível posterior da perna direita, com menos de duas semanas de evolução. Era habitualmente medicada com varfarina, suplementos de cálcio e ferro, e tinha iniciado recentemente corticoterapia – todos eles fármacos com forte associação à calcifilaxia. Apesar da intervenção de uma equipa multidisciplinar de Medicina Interna, Cirurgia Geral, Dermatologia, Cuidados Paliativos e Nutrição e da remoção dos factores de risco modificáveis associados à doença, as lesões progrediram rapidamente. Em menos de duas semanas, apesar de desbridamento sequencial, as lesões progrediram para úlceras de grandes dimensões, conduzindo a choque séptico com disfunção multiorgânica que não respondeu à terapêutica instituída. A optimização analgésica foi um desafio, assim como o diagnóstico definitivo. Apenas com uma segunda biópsia cutânea se confirmaram lesões compatíveis com calcifilaxia.
Discussão:
Este caso representa a formação de uma tempestade perfeita que não foi possível antever, numa doente seguida em diferentes especialidades e com múltiplas patologias crónicas cujas diferentes abordagens conduziram a uma acumulação de factores de risco. E demonstra que apesar de começar a ser mais reconhecida, a calcifilaxia continua a ser um grande desafio diagnóstico e terapêutico.