Atendendo à baixa taxa de incidência dos abcessos hepáticos, é necessário um elevado índice de suspeição, sobretudo em doentes imunocomprometidos e com patologia estrutural hepática ou biliar, e uma história clínica dirigida para o correcto diagnóstico e instituição terapêutica. Pelas hemoculturas é possível isolar o agente patogénico em até 50% dos casos, enquanto que nas situações em que a drenagem do abcesso está indicada o diagnóstico etiológico é possível em até 90% dos casos. Não havendo isolamentos microbiológicos, está preconizada antibioterapia de largo espectro e com cobertura para Streptococcus, bacilos gram - entéricos e anaeróbios, com esquemas terapêuticos como a associação de uma cefalosporina de 3ª geração com metronidazol.
Homem de 26 anos, cabo-verdiano a residir em Portugal desde os 20 anos, sem antecedentes médicos ou cirúrgicos, sem terapêutica crónica ou alergias medicamentosas conhecidas. Internado no serviço de Medicina Interna em Maio/2018 por abcesso hepático de etiologia não-esclarecida. Hemoculturas e coproculturas sem isolamentos, e serologias negativas para vírus hepatotrópicos, Echinococcus, Brucella, Coxiella e Entamoeba histolytica. Sem história de infecção da cavidade oral ou otorrinológica. Ecocardiograma sem valvulopatias ou vegetações, e exames imagiológicos da cavidade abdomino-pélvica sem lesão de outros órgãos. A tomografia abdominal à admissão mostrou lesão hepática abcedada única, localização subcapsular no segmento VI, multiloculada, 4.5x6cm de maiores eixos, sem critérios para drenagem percutânea ou cirúrgica, pelo que cumpriu antibioterapia com ceftriaxone e metronidazol durante 9 semanas, com boa resposta clínica e imagiológica.
Recorreu novamente ao serviço de urgência 11 dias após a alta por quadro clínico de instalação súbita de disartria e ataxia da marcha, sem outros défices neurológicos e sem evidência de lesões intraparenquimatosas focais na tomografia crânio-encefálica. Ficou internado para vigilância e investigação etiológica, tendo realizado ressonância magnética crânio-encefálica que revelou “áreas de hipersinal bilaterais e simétricas de ambos os hemisférios cerebelosos” interpretadas como de natureza tóxica, provavelmente ao metronidazol pelo padrão de distribuição. Défices resolvidos com a suspensão do fármaco, tendo tido alta para a consulta de Infecciologia sem sequelas neurológicas e com lesão hepática residual.
O metronidazol tem sido usado na prática clínica desde há mais de 50 anos, permanecendo o fármaco de eleição para infecções a anaeróbios. Reacções adversas minor podem ocorrer e a neurotoxicidade não é excepção, podendo verificar-se neuropatia periférica, cefaleias ou tonturas. No entanto, a toxicidade cerebelosa é rara, havendo poucos casos descritos na literatura e desconhecendo-se a patogénese. O contexto clínico enquadrado com sinais imagiológicos clássicos faz o diagnóstico, e a sintomatologia é geralmente reversível com a suspensão do fármaco.