Catarina Teles Neto, Sónia Almeida, Marta Valentim, Ana Gameiro, Margarida Cabrita
Introdução
A Doença de Graves tem etiologia auto-imune e é responsável por 60-80% dos casos de hipertiroidismo.
O fígado é o principal responsável pelo metabolismo tiroideu e a disfunção hepática associada ao hipertiroidismo não está completamente esclarecida. A manifestação hepática mais comum da doença tiroideia é uma elevação modesta das transaminases sendo a icterícia colestática uma manifestação rara.
Caso clínico
Mulher de 54 anos com história de de Doença de Graves, fibrilhação auricular e acidente vascular cerebral isquémico, trazida ao serviço de urgência por icterícia, diarreia, anorexia e perda ponderal com três semanas de evolução.
À observação normotensa, taquicardica, polipneica com SpO2 95% e apirética; apresentava exoftalmia bilateral, escleróticas e pele ictéricas e bócio palpável; sem ingurgitamento jugular ou refluxo hepato-jugular.
Analiticamente anemia normocítica normocrómica (hemoglobina 9.4g/dL), hiperbilirrubinémia conjugada - bilirrubina total 18,9mg/dL e bilirrubina directa 14.3mg/dL - sem citólise hepática e com padrão colestático (fosfatase alcalina 211U/L e gama-GT 211U/L); INR 2.04 sob varfarina, péptido natriurético B elevado - 821pg/mL e TSH 0.0µUl/mL e FT4 4.81ng/dl.
A doente foi internada por tirotoxicose e icterícia não esclarecida. Iniciou propiltiouracil, propranolol e corticoterapia.
O screening viral e auto-imune hepático foram negativos. A ferritina, o cobre sérico, a ceruloplasmina e a haptoglobina estavam normais.
O ecocardiograma não tinha alterações relevantes. A colangiopancreatografia por ressonância magnética mostrou fígado globoso e heterogéneo, sem dilatação das vias biliares; proeminência do calibre das veias supra-hepáticas provavelmente associado a componente de sobrecarga cardíaca. A biópsia hepática mostrou sinais de esteatose.
Com a progressiva normalização da função tiroideia houve melhoria clínica e regressão da hiperbilirrubinémia.
Discussão
A fibrilhação auricular e a insuficiência cardíaca de alto débito são manifestações clínicas conhecidas da tirotoxicose. A icterícia neste caso poderia ter um componente cardíaco, contudo, a hepatopatia congestiva caracteriza-se geralmente por hiperbilirrubinémia não conjugada e moderada, à excepção dos casos de hepatite isquémica para a qual a nossa doente não preenche critérios.
Foram excluídas outras causas de lesão hepática como auto-imunes, infecciosas, neoplásicas ou tóxicas através de parâmetros laboratoriais, imagiológicos e histológicos. Tendo em conta a franca melhoria clínica e analítica aquando da normalização da função tiroideia é possível assumir que estamos perante um caso raro de icterícia colestática severa de causa tiroideia.
A icterícia causada por hipertiroidismo per se é muito rara e o excesso de tiroxina parece ser responsável por lesão directa aos hepatócitos. Perante um doente com uma icterícia de causa desconhecida há que excluir tirotoxicose como causa primária.