Ana Luísa Nunes, Filipe dos Santos Mira, Ana Rita Elvas, Daniela Santos, Jandira Lima, Nuno Afonso Oliveira, Rui M. Santos, Armando Carvalho
INTRODUÇÃO: A microangiopatia trombótica (MAT) caracteriza-se por anemia hemolítica microangiopática (AHM) e trombocitopenia consuntiva, com oclusão microvascular e falência orgânica. O diagnóstico e tratamento precoces melhoram o prognóstico. A síndrome hemolítica urémia atípica (SHUa), uma forma de MAT, é mediada por desregulação da via alternativa do complemento desencadeada por factores genéticos e/ou ambientais. Apesar de rara e mais frequente em crianças, pode surgir nos adultos. Descreve-se um caso de SHUa em idade adulta, desencadeado por uma associação de fatores etiológicos.
CASO CLÍNICO: Mulher de 72 anos recorreu ao serviço de urgência por lombalgia com 1 semana de evolução associada a dor abdominal nos quadrantes inferiores e urina com cheiro fétido. Antecedentes de hipertensão arterial (nifedipina 30mg id), dislipidemia (atorvastatina 20mg id), osteoporose (ácido alendrónico+colecalciferol 70mg+5600UI/semana) e degenerescência macular relacionada com a idade (bevacizumab introcular bimensalmente). À admissão encontrava-se hipertensa e ictérica. Analiticamente com lesão renal aguda (creatinina 6,3mg/dL), hemólise (LDH>5000U/L, bilirrubina total 4.1mg/dL à custa da indireta), elevação da ALT (1200U/L), AST (1000U/L), FA (334U/L) e PCR (28mg/dL). Sem anemia, com trombocitopenia grave (14G/L) e esquizócitos (>85/campo) no esfregaço de sangue periférico. Teste de Coombs negativo. Radiografia torácica e ecografia abdominal e renovesical sem alterações. Coagulação normal, exceto D-dímeros (62000ng/mL). AngioTC torácica e abdominal excluiu tromboembolia pulmonar e dissecção aórtica. Evidência de anemia de novo (Hb 7,5g/dL), reticulocitose e haptoglobina reduzida. Atividade de ADAMTS13 normal. Isolamento de Escherichia coli na urocultura, para a qual iniciou ceftriaxone (2g id). Pesquisa de toxina Shiga nas fezes negativa. Restante estudo serológico e imunológico sem alterações. Perante os achados, a hipótese de SHUa tornou-se plausível. O estudo genético identificou 2 variantes heterozigotas benignas para o gene CFH e uma variante missense mais rara, patogénica, para o mesmo gene (c.3226 C>G, p.Gln1076Glu). Fez hemodiálise (4 sessões) por acidose metabólica, hipercaliémia e oligúria e plasmaferese diária (15 sessões) com remissão completa da hemólise e recuperação progressiva da função renal e anemia. Foi imunizada contra o Pneumococcus e Meningococcus caso houvesse necessidade de terapêutica com Eculizumab (que não se verificou). A biopsia renal confirmou o diagnóstico de MAT.
DISCUSSÃO: Na nossa doente a hipótese de SHUa, apesar de rara na idade adulta, tornou-se evidente, sobretudo após exclusão de condições autoimunes. A identificação de uma variante patogénica do gene CFH (da via alternativa do complemento) reforçou o diagnóstico. A pielonefrite aguda poderá ter sido o trigger da via alternativa do complemento e o Bevacizumab (inibidor do VEGF) o desencadeador da SHUa, mesmo que utilizado topicamente.