Cecília Cerveira, Carlos D. Silva, Carolina Teles, José E. Mateus, Teresa Vaio, Rui Santos, Armando Carvalho
INTRODUÇÃO:
A porfiria aguda intermitente é uma doença autossómica dominante, a mais prevalente dos 8 tipos de porfiria. Resulta da deficiência na 3ª enzima da síntese do heme, a porfobilinogénio desaminase. Afecta 1 em cada 2000 pessoas e só 10% manifestam a doença, habitualmente mulheres jovens.
CASO CLÍNICO:
Doente do género feminino, 53 anos, diagnosticada com porfiria aguda intermitente há 15 anos, assintomática há 8. Era tratada quinzenalmente com preparado de heme (hemina), encontrando-se há 5 semanas sem terapêutica. Foi admitida no serviço de urgência por dores generalizadas de predomínio abdominal, tremores, fraqueza muscular e confusão mental, com 3 dias de evolução. Negava contexto gripal, toma de medicamentos novos ou outras substâncias. Referia obstipação e urina mais escura. Apresentava-se hipertensa (180/98mmHg), ligeiramente taquicárdica (92bpm) e sub-febril (37,4ºC), sem outras alterações ao exame físico. Estava confusa e desorientada, sem défices neurológicos focais, mas incapaz para a marcha. Tinha gasimetria arterial normal, sódio de 131 mmol/L, sem elevação dos parâmetros inflamatórios ou de citólise e preservação da função renal e hepática. A tira teste de urina era normal, assim como a ecografia abdominal. Excluída qualquer infecção, patologia neuropsiquiátrica e causas comuns de dor abdominal, assumiu-se o diagnóstico de crise aguda de porfiria, iniciando terapêutica com perfusão de glicose e reforço calórico, enquanto aguardou a hemina. A dor foi tratada com opióides e analgésicos adjuvantes, de acordo com a escada analgésica da OMS. O porfobilinogénio urinário era 20xLSN, as porfirinas 2xLSN e eram normais os valores de ácido delta-aminolevulínico. Verificou-se melhoria nos dias seguintes até à administração de metamizol devido a dor irruptiva. Houve novo agravamento álgico e sobretudo neurológico, com electromiograma a revelar polineuropatia sensitivo-motora axonal aguda grave, motivando novas administrações de hemina. Seguiram-se vários meses de recuperação com recurso à medicina física e reabilitação, instituição da terapêutica habitual com hemina e evicção de fármacos porfobilinogénicos.
DISCUSSÃO:
Apesar de rara, a apresentação clássica da porfiria inclui dor aguda, principalmente abdominal, muitas vezes recorrente até se obter o diagnóstico e após exclusão de outras causas. Os fármacos porfirinogénicos, entre eles o metamizol, são muitas vezes os desencadeantes de crises, devendo-se informar o doente e os profissionais de saúde. As infecções e oscilações hormonais na mulher são outros factores desencadeantes comuns. O diagnóstico inicial é clínico e confirmado posteriormente através do doseamento urinário dos metabolitos das porfirinas. Actualmente o tratamento prende-se com infusões de glicose e hemina. O transplante hepático poderá ter o seu papel em casos graves refratários à terapêutica ou devido a hemossiderose secundária às administrações repetidas de hemina.