Marta Pina (1), Filipa Guimarães (2), Rui Moço (2), J. Vasco Barreto (2), Nídia Pereira (2)
Introdução:
O Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) é uma doença multissistémica com um espetro de apresentação amplo. O envolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC) na apresentação é infrequente (12 a 21%), sendo a sua expressão clínica muito heterogénea e inespecífica. Os sintomas neuropsiquiátricos, nomeadamente a psicose, são reportados como sintoma de apresentação de LES em apenas 1% dos casos.
Caso clínico:
Mulher, 24 anos, melanodérmica, com 8 anos de evolução de sintomatologia enquadrável em quadro neuropsiquiátrico caracterizado por perceção de odor corporal desagradável (peixe), aplanamento de afetos, isolamento social, absentismo e baixo rendimento escolar. Notório agravamento deste quadro desde 2017.
Observada em Consulta Externa (CE) de Medicina Interna (MI) onde é referido internamento prévio (2009) por pericardite de etiologia presumidamente vírica, contudo com estudo a revelar positividade para ANA, dsDNA e anticorpo (Atc) anti-SSA e SSB (alterações mantidas em 2010, 2012 e 2014).
Foi avaliada por Psiquiatria que confirmou quadro psicótico e propôs terapêutica com olanzapina que a doente não cumpriu. Manteve seguimento irregular na CE de MI, que condicionou a progressão da investigação. Em Maio de 2018, foi levada ao serviço de urgência de Psiquiatria por surto psicótico com necessidade de emissão de mandato de condução para internamento em regime compulsivo.
Após estabilização do quadro neuropsiquiátrico prosseguiu estudo de que se destaca: ANA 1/1280 padrão fino granular com mitoses e nucleólos positivos; dsDNA 1/160; consumo de C4 (7.4mg/dL); Atc anti SSA (11100UI/mL) e SSB (1540UI/L); VS 40mm/1ªh, IgG 2397mg/dL; fator reumatóide 313.1UI/mL e leucopenia (2900/mcL). Estudo genético e fenotípico excluiu trimetilaminúria. AngioRM cerebral a mostrar lesões na substância branca cerebral subcortical de ambos os hemisférios, sem restrição à difusão a sugerir lesões inflamatórias. Líquor com exame citoquímico sem alterações, pesquisa de bandas oligoclonais e de auto-anticorpos anti-neuronais negativa.
Assumido LES com atingimento do SNC e hematológico em overlap com síndrome de Sjögren. Iniciou pulsos de Metilprednisolona 1g/dia (3 dias), seguido de prednisolona oral 1mg/kg/dia, hidroxicloroquina 400mg/dia e posteriormente associada azatioprina 150mg/dia.
Verificada melhoria clínica com comportamento mais calmo e adequado, sem evidência de atividade delirante ou psicótica, com possibilidade de redução de fármacos anti-psicóticos. Analiticamente com negativação do dsDNA e normalização dos leucócitos, IgG e da VS. AngioRM de reavaliação sem evidência de aumento da carga lesional.
Este caso realça a importância da história clínica como instrumento fundamental no reconhecimento dos sintomas neuropsiquiátricos como manifestação de doença autoimune. A exigência de uma relação médico-doente sólida e a ponderação dos riscos-benefícios das terapêuticas disponíveis, foram fatores desafiantes e decisivos para o tratamento desta doente.