SERVIÇO DE MEDICINA 2, SECTOR B, HOSPITAL DE SANTA MARIA, CENTRO HOSPITALAR UNIVERSITÁRIO LISBOA NORTE, LISBOA, PORTUGAL
Catarina de Sousa Gonçalves, Nuno Reis Carreira, Marisa Teixeira Silva, Rui Victorino
Introdução
A Febre Q é uma zoonose com crescente incidência na Europa, possivelmente subestimada, causada pela bactéria Coxiella burnetti, constituindo uma doença complexa e polimórfica. Apresenta-se habitualmente como autolimitada, com possível progressão para a cronicidade e com complicações potencialmente fatais. A doença aguda manifesta-se mais frequentemente como hepatite e pneumonia, enquanto a doença crónica pode manifestar-se sob a forma de endocardite.
Caso Clínico
Mulher de 67 anos, internada por dispneia no contexto de agravamento de derrame pleural e pericárdico. Refira-se quadro prévio de febre, perda de peso, dor abdominal, com evolução de 2 meses, associado a alteração das provas hepáticas e espessamento e líquido perivesicular documentado em ecografia e TAC de ambulatório, motivando internamento em serviço de cirurgia por colecistite alitiásica. Contexto epidemiológico inocente e antecedentes pessoais irrelevantes. Ao exame objectivo sem sinais de dificuldade respiratória, auscultação com diminuição do murmúrio vesicular no hemitórax esquerdo, macicez à percussão e palpação de adenopatia supraclavicular direita isolada. ECG sem alterações a assinalar. O ecocardiograma mostrava uma fina lâmina de derrame pericárdico, sem sinais de compromisso hemodinâmico, boa função ventricular esquerda, sem alterações segmentares, cavidades direitas normais e sem hipertensão pulmonar.
O estudo laboratorial revelava citocolestase (AST/TGO: 223U/L, ALT/TGP: 293U/L, ALP 220U/L e gGT 150U/L), elevação dos biomarcadores inflamatórios (VS: 53mm; PCR:7 mg/dL; Ferritina: 431ug/L). Marcadores de necrose miocárdica negativos e NT-proBNP dentro da normalidade.
No seguimento do estudo a TC corpo mostrava “derrame pleural bilateral de pequenas dimensões com fina lâmina de derrame pericárdico, sem adenopatias patológicas ou outras alterações”; endoscopia com duodenoscopia: gastrite crónica não ativa, Helicobacter pylori positivo em biópsias. Realizada toracocentese diagnóstica: Líquido pleural compatível com exsudado, com predomínio de linfócitos e células mesoteliais/macrófagos; exame bacteriológico, Ziehl-Neelsen e pesquisa de células neoplásicas negativos. Pelo quadro de serosite, pedido estudo autoimune, que se revelou negativo. O estudo infeccioso revelou positividade para febre Q em fase aguda/convalescença, tendo completado 14 dias de doxiciclina, com benefício clínico e normalização da função hepática.
Discussão:
Neste caso descreve-se uma apresentação atípica de Febre Q, manifestada por colecistite alitiásica, serosite manifestada por derrame pleural e pericárdico a par de quadro consumptivo. Pelo facto da forma crónica da doença ser rara e a sua apresentação tão variada e inespecífica, é fácil passar despercebida. A Febre Q é uma doença globalmente disseminada e um problema de saúde pública major, para o qual os profissionais de saúde devem estar alertados, devendo ser sempre uma hipótese diagnóstica a colocar em casos como o apresentado.