Maria João Correia, Catarina Mateus, Ana Lopes Santos, Rui Morais, Vanisa Rosário, Cândida Fonseca, Luís Campos
Introdução:
O défice de Glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD) corresponde ao distúrbio enzimático mais comum dos eritrócitos. A ausência desta enzima é hereditária, ligada ao X, e condiciona maior sensibilidade dos eritrócitos ao stress oxidativo, provocando episódios de hemólise. É mais frequente em homens e em raça negra, nas mulheres é necessária a presença de homozigotia, pelo que são frequentemente apenas portadoras assintomáticas da mutação. A apresentação clínica é variável, dependendo da expressão de G6PD nos eritrócitos. O tratamento é de suporte em fase aguda, e deve ser promovida a evicção de determinados medicamentos e restrição dietética dirigida.
Caso Clínico:
Mulher, 68 anos, melanodérmica, natural de Cabo Verde, com história conhecida de diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial e osteoartroses. Medicada com irbesartan, hidroclorotiazida, nifedipina, gliclazida, metformina e ácido acetilsalicílico. Foi encaminhada pelo médico assistente ao serviço de urgência (SU) por quadro com 4 dias de evolução de cansaço, tonturas, lipotímia, náuseas e vómitos; associados a descida de 5g/dL de hemoglobina (Hb) em um mês. Negava perdas hemáticas. À admissão no SU apresentava-se hemodinamicamente estável, com cansaço fácil, palidez cutânea e mucosas ictéricas, sem hepato-esplenomegália ou outras alterações no exame objetivo. Analiticamente destacava-se anemia macrocítica (Hb 7.3 g/dL, VGM 105.8 fL), leucocitose (15.000 x10^9/L), ferritina 1058 ng/mL, haptoglobina indoseável, LDH 649 U/L, bilirrubina total 0.57 mg/dL, sem alterações da função renal e enzimologia hepática; Pesquisa de plasmódio negativo; Ecografia abdominal sem alterações. Dada a evidência de anemia hemolítica, ficou internada para estudo etiológico e estabilização clínica. Da investigação etiológica realizada: Teste de Coombs directo negativo, electroforese das Hemoglobinas sem evidência de hemoglobinopatia, hemoglobinémia normal e doseamento de G6PD dos eritrócitos muito baixo (0.4 U/g Hb).
Concluiu-se assim o diagnóstico de anemia hemolítica por défice de G6PD. A doente foi questionada sobre os seus hábitos alimentares, referindo ingestão recente de favas, cerca de uma semana antes do internamento. Teve alta após 6 dias de internamento, com subida de Hb para 10.9 g/dL, apenas com terapêutica de suporte, clinicamente melhorada. Manteve seguimento em consulta de medicina interna e indicação para evicção de agentes desencadeantes de hemólise aguda.
Discussão:
O défice de G6PD é raro no sexo feminino. Nas mulheres, geralmente apenas portadoras da mutação, infrequentemente ocorrem crises hemolíticas.
Apesar de anemia hemolítica por défice de G6PD ser frequente na raça negra, este caso torna-se interessante por se tratar de um diagnóstico inaugural aos 68 anos, em mulher, sem quaisquer episódios prévios conhecidos ou diagnosticados de hemólise, e que incluía na sua alimentação o alimento mais frequentemente associado a crises hemolíticas: favas.